O comissário Siqueira
 



Contos

O comissário Siqueira

Enio Albuquerque de Oliveira




Conheci o Siqueira nos anos setenta.

Eu havia concluído com brilhantismo o curso na Academia e recebera, junto com o diploma, minha nomeação para o primeiro degrau da carreira: inspetor de polícia. Eufórico com meu desempenho, juntei à portaria de nomeação o meu currículo escolar para apresentá-lo como credencial. Tinha certeza que as notas avaliadoras e os conceitos de excelência emitidos por meus mestres me garantiriam um lugar proeminente em qualquer delegacia.

Antes de me apresentar ao cargo tratei de me vestir cuidadosamente.

Escolhi um traje escuro, discreto, apropriado para um detetive, mesmo em início de carreira. Pretendia, desde o início, causar impacto.

Fui designado para servir na 19ª.

Logo ao me apresentar minhas pretensões sofreram um primeiro baque: O doutor Meira, bacharel titular, mostrou-se tão ocupado que não prestou atenção em meu nome, coisa que alardeei, logo ao entrar em seu gabinete. Também não ligou para minhas qualificações. Na verdade e para minha desdita, nem sequer olhou para o currículo que eu havia elaborado com tanto capricho e no qual depositava tanta fé.

Limitou-se a devolver-me os documentos com a ponta dos dedos como se fosse algo inoportuno a lhe atrapalhar o mister. Rapidamente voltou a atenção para uns papéis sobre sua mesa e despediu-me secamente sem mais levantar os olhos: — Apresente-se ao Siqueira.

Irritei-me.

Era muito pouco caso, muita indiferença. Como um delegado velho, meio vesgo, de óculos pendurados na ponta do nariz, não tomava conhecimento de minhas excelentes qualificações e despachava-me aos cuidados de um funcionário subalterno? Afinal de contas, eu tinha sido o primeiro de minha turma e, se não tinha alcançado a láurea culpe-se a dois ou três recalcados professores surrupiadores de notas que, por inveja ou despeito, evitaram minha consagração.

Eu esperava do titular da 19ª uma recepção mais calorosa, alguma coisa digna de um primeiro lugar.
Evidentemente, a despeito de minhas qualificações, ainda não chegara ao nível de um Holmes ou Poirot. Reconhecia, a contra gosto, que para completar minha bagagem profissional faltava a experiência. Mas esta, julgava eu, era fácil de obter; um ou dois meses de vivência na azáfama da delegacia preencheriam a lacuna.
Diplomaticamente escondi meu desconforto para com o doutor Meira. Não era ocasião adequada para manifestações de desagrado, ainda mais no primeiro dia de assunção ao cargo. Retirei-me de seu gabinete com um sorriso contrafeito e tratei de procurar o tal Siqueira que, soube mais tarde, era comissário, cargo apenas um degrau abaixo de delegado; um subchefe, portanto.

Não perguntei a ninguém quem era o Siqueira. Confiava na minha argúcia para identificá-lo. Na realidade, os indícios eram tão claros que prescindiam de raciocínio.

Bastou-me girar os olhos cuidadosamente pela sala apinhada de funcionários para achar o homem: se sentava em lugar meio isolado atrás de uma escrivaninha de tampo largo. Ao aproximar-me notei que mantinha as pernas distendidas e os pés apoiados num escabelo. A gravata tinha-a frouxa no colarinho. O casaco, atirado com desleixo no espaldar da cadeira, escondia parcialmente um 38 antiquado, daqueles de cano longo atualmente só vistos em museus.

Não precisei ler a placa sobre a mesa com seu nome e título. Seu isolamento e a atitude desleixada denunciou-o ao primeiro golpe de vista. Ficou claro para mim que só um preposto do Meira com autoridade delegada podia permitir-se atitude de tanta ociosidade. Tratava-se de um mandarim, sem dúvida, destes protegidos pela autoridade maior que dirigia, mas não trabalhava. Mandava, mas obedecia somente ao delegado.

Apresentei-me. Desta vez, prudente, evitei a grandiloqüência.

Seu corpo, recostado na cadeira giratória, não se moveu. Seus olhos passearam de lá para cá me esquadrinhando. Um palito de fósforo passeava ora para um lado ora para outro da boca quase escondida sob um basto bigode.

Não recolheu as pernas nem tirou os pés do banquinho.

Um fio de baba escorreu entre seus lábios. Limpou-o com o dorso da mão. Foi o primeiro gesto daquele corpo lasso, movimento vagaroso como se muito lhe custasse qualquer ação.

É um babão, concluí em íntimo pensar.

— Babão e preguiçoso — sopraram Poirot e Holmes em dueto ao meu ouvido.

Diferente do doutor Meira, leu meus documentos demorando-se no currículo.

Pareceu-me que deu certa importância para a excepcionalidade de minhas notas, para a láurea quase conquistada, mas não demonstrou admiração nem fez comentários.

Talvez o asno não soubesse o significado de láurea, daí sua aparente indiferença.

Classifiquei-o logo como um sobrevivente de uma geração arqueológica. Certamente ainda defendia as idéias de Lombroso e suas teorias anatômicas. Superado pelos anos, estava ali aplastado a espera da aposentadoria compulsória.

Por um instante pensei que ele tinha captado minha irreverência, mas foi só um instante. Um bom detetive jamais deixa perceber seus pensamentos.

Tirou o palito da boca.

Com a mesma mão que limpara a baba, apontou-me uma secretária próxima. Sua voz de barítono desafinado me mandou sentar e aguardar futuras determinações.

Esperar futuras determinações! Ora vejam só a desconsideração!

Obedeci a contragosto.

Deixou-me ali ficar até o fim do expediente a observar o esvoaçar das moscas.

Ninguém deu por mim. As horas escorreram e as pessoas que por ali labutavam sequer olhavam em minha direção.

Impacientei-me.

Tamborilei os dedos no tampo da mesa em ritmo raivoso: o que pensava aquele chefetezinho? Eu não chegara ali para observar moscas. Logo eu, um quase laureado, a personificação da ciência criminalística moderna, abandonado aos insetos!

Os dias que se seguiram não foram diferentes ao inicial: chegar, bater o ponto, dar bom-dia ao babão, sentar à secretária, tamborilar com os dedos o tampo da mesa, levantar à hora do cafezinho, tornar a sentar e observar o esvoaçar das moscas.

Onde os crimes hediondos? Os assaltos a bancos? Os furtos e roubos espetaculares e misteriosos a exigir o serviço de um cérebro privilegiado como o meu?

Siqueira, ao chegar, acenava de longe e nada dizia: gesto simples, mera observância de preceito educacional. Eu correspondia da mesma forma. Se ele pensava que eu iria me humilhar reinvidicando qualquer coisa, estava enganado; não iria pedir penico a chefinho ultrapassado.

Siqueira, pela manhã, não ficava muito tempo atrás de sua mesa. Agilizava ordens, convocava pessoal, sacudia boletins de ocorrência no alto da cabeça exigindo soluções. Até o cafezinho das dez horas ele dispensava saindo logo em diligências acompanhado por dois ou três colegas.

Eu seguia-o com os olhos expectantes sentindo-me propositalmente negligenciado. Quando seria chamado para sair com a equipe?

O tempo passava.

O chamado não vinha.

Me cozinhava em fogo lento — pensava sopitando ódio — Persegue-me pelos meus méritos, como fizeram aqueles ladrões de láurea..

Invejoso! Recalcado!

Antes não tivesse lhe mostrado meu currículo, antes não tivesse dado a perceber minha genialidade. Mas que fazer? O mal estava feito. Manda quem pode, obedece quem está por baixo...

Filho da puta esse Siqueira!

Observo-o à tarde. Como pode mudar tanto? Bate o ponto, atirar-se naquela cadeira, espicha as pernas, põe os pés no banquinho e deixa a vida escorrer chupando palito.

É o que dá ficar velho na função pública.

Relapso!

Pela manhã finge que trabalha, a tarde atira-se no ócio.

Só no terceiro dia de muito tédio e muito tamborilar no tampo da mesa me fez as tais determinações. Surpreendeu-me trazendo velhos processos, uns dez ou doze que atirou em minha mesa estrondosamente. Ordenou-me ler todos os calhamaços vindos do arquivo morto. De cada um deles eu devia fazer uma apreciação por escrito, principalmente dos casos com documentação mais alentada. Deu-me uma idosa Remington de teclas desgastadas que há muito dormitava no almoxarifado.

Eu, dedógrafo mais do que datilógrafo, passei a perder um tempo enorme batendo relatórios sobre casos solucionados e que há muito tinham perdido o interesse.

Da maioria redigi açodadamente minhas observações; queria terminar logo com o suplício. A alguns dediquei mais atenção.

Quando pensava ter esgotado o estoque, o Siqueira depositava diante de mim mais uma carrada de papel velho.

E assim passou-se quase um mês. Ou foi um mês inteiro?

Minha frustração aumentava e com ela meu ódio à figura do comissário — É filho de pai desconhecido — repetia para mim mesmo a cada nova pilha de processos — e a mãe foi dona de bordel.

Bastardo!

Diariamente pela manhã eu via o Siqueira sair com agentes mais antigos a resolver ilícitos. A mim deixava soterrado em velhas pastas ruminando frustrações: quando seria designado para investigar um caso? Quando acompanharia uma diligência?

Quando, finalmente, poderia demonstrar todos os meus conhecimentos, minha argúcia, minha excepcional habilidade?

Falou-me um escrivão, na pausa do cafezinho, que o comissário era pessoa conceituada, principalmente por sua aguda percepção das coisas. Afirmou que o homem tinha faro desenvolvido pela experiência de muitos anos no ofício. Falou-me de sua intuição quase feminina para resolver crimes. Prescindia de ciência ou de sofisticados recursos tecnológicos: raciocínio era seu instrumento preferido. Fazia pouco caso dos colegas dados a cientifismos. Suas deduções apontavam culpados ou excluía inocentes acertando em quase cem por cento dos casos — apenas por lógica — exclamou sem esconder sua admiração.

— Dizem até — confidenciou-me em voz baixa com tom de mistério — que o homem lê pensamentos. Ele sabe, antes de qualquer investigação, o que esconde um criminoso seja ele pé de chinelo ou estes de colarinho branco.

Sem dar a perceber ao meu colega meus verdadeiros sentimentos, enchi de loas o comissário. Eu não era bobo para dar motivos de intensificar meu ordálio expondo minha má querência. Mas graças às informações recebidas, tirei minha conclusão: Siqueira trabalhava com palpites, com intuições. Nada de microscópios, de datiloscopia, de testes de DNA. Bastavam-lhe os interrogatórios habilmente conduzidos para suas conclusões, a maioria de caráter metafísico. Em suma: tinha a sorte dos ganhadores de loteria, uma sorte que, por sua freqüência, desafiava as estatísticas. Não era de estranhar que invejasse minhas qualidades ressaltadas no currículo; elas ameaçavam-no. Não suportava sombras que pudessem escurecer seu prestígio. Tratava então de abafar meu brilho me exilando por detrás de uma mesa

Leitor de pensamento, ora vejam só que coisa estapafúrdia!

Soube da proximidade de sua aposentadoria por idade, quando voltava do primeiro caso que me designou. Depois de quatro semanas de confinamento em arquivos mortos aquele carcereiro havia me libertado. Finalmente eu iria demonstrar minhas qualidades que ninguém até então e graças ao Siqueira, tivera oportunidade de observar.

A ocorrência era corriqueira: agressão sofrida por uma mulher pelo marido alcoólatra. Prendi o viciado em flagrante sem necessitar de meus profundos conhecimentos de técnica investigatória.

Naquele mesmo dia resolvi outro caso: roubo de bicicleta, coisa de adolescentes que terminara em briga entre vizinhos — Por enquanto nada demais — pensei ao prestar contas de minha atividade ao comissário. Na ocasião ele sequer tirou o palito da boca, me olhou com um sorriso irônico e dispensou-me sem nada dizer.

Mais tarde ao confraternizar-me com os colegas inspetores, soube que 90% das ocorrências eram assim; pequenos e insignificantes conflitos no seio da comunidade.

Mas só após meses de atividade que me veio a cair a ficha: para o lufa-lufa diário da delegacia, mais valiam a leitura dos antigos inquéritos, factuais e pouco científicos, do que os volumosos tratados de criminologia nos quais eu tanto confiava.

Sem que me desse conta e a medida que a prática substituía a teoria, a raiva contra o Siqueira ia amainando.

No dia de sua aposentadoria houve uma festinha de adeus. Fui cumprimentar-lhe encabulado e já cheio de remorso. Mostrou-me um sorriso amigável e apertou-me a mão demoradamente. Juntou-me ao seu peito em inesperado abraço e disse ao pé de meu ouvido: — aprendeu?

E rindo ante meu espanto murmurou para que só eu ouvisse: — Filho da puta é tua mãe.

Envergonhado percebi: ou ele sempre soubera de meu pensamento ou era exatamente o que esperava de novatos.

Depois da festa perdi de vista o Siqueira. Nunca mais o vi. Dizem que morreu dois anos depois da aposentadoria: de infarto, dizem uns, de câncer, dizem outros.

Há, entretanto, os que indicam a solidão e o esquecimento como causa de seu passamento. De minha parte pergunto com um pouco de apreensão: não será a solidão e o esquecimento as coisas mais letais para os que se retiraram do fluxo da vida?

Com mais de trinta anos de serviço, agora comissário, sou eu quem recebe os jovens inspetores. Lembro então o melhor mestre que tive quando neófito da profissão. E sem medo de plágio repito impiedosamente sua lição: deixo os Poirot e os Holmes que aqui me chegam respirando o pó do arquivo morto por longos trinta dias.

 

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